Beleza

Sou do tamanho d’Aquele que me vê

Ao contrário daquilo que acontece com obras como a Pietá de Michelangelo, o quadro Maternidade de Almada Negreiros possui uma beleza que parece evadir o olhar passageiro. Ao início, deparamo-nos com um quadro de tons escuros e pesados formado por um objecto central mas pouco nítido sobre um fundo de cores fortes e contrastantes. Num segundo momento, reconhecemos a figura de uma mulher que não possui os traços harmoniosos e delicados do ideal clássico feminino. Pelo contrário, os seus pés e mãos são brutos e desconfortavelmente grandes quando comparados com o resto do corpo, os braços são musculados e as suas feições toscas. Por fim, apercebemo-nos também que entre os seus braços se encontra uma forma distinta de si, um bebé.

Por um lado, a justaposição destes dois elementos põe simultaneamente em destaque as características dissonantes da mulher e a fragilidade da criança. Por outro, a posição dos corpos demonstra que eles não estão apenas próximos a nível físico; existe uma relação pessoal entre eles: o bebé estende os braços em direcção à mulher, enquanto ela se debruça por inteiro sobre ele. De repente, a pintura transforma-se diante dos nossos olhos e as personagens saem do anonimato: aquela senhora é a Mãe do bebé e a criança é o Filho da mulher. Passamos, enfim, a compreender como o quadro reflecte a visão do Filho e não a de um mero espectador imparcial, revelando assim a beleza inicialmente escondida da Mãe: as suas mãos são grandes porque o amparam, os seus braços musculados porque o envolvem e protegem, e a sua feição é simples porque é a de uma mãe enternecida diante do seu filho muito amado.

Todo o quadro é composto maioritariamente por três tonalidades, azul, amarelo e terracota. Enquanto as primeiras duas são usadas para representar diversas coisas, como a roupa, o chão e o céu, a terceira é reservada unicamente para as pessoas. Não é de espantar que esta obra esteja impregnada de uma tónica fortemente personalista, uma vez que Almada Negreiros a pintou por ocasião do nascimento do seu primeiro filho, José, pouco depois de casar com Sara Afonso.

Para além dos elementos visuais que compõem a obra, esta revela-nos algo sobre nós próprios que é comum ser esquecido nos dias de hoje: a nossa natureza enquanto pessoas não depende das nossas características físicas nem das nossas capacidades mentais mais ou menos desenvolvidas, mas advém sim de sermos seres de relação. De forma misteriosa, isto significa que aquilo que o Homem é, é ditado essencialmente pela relação que tem com um Outro distinto de si, isto é, o Homem apresenta-se diante de si próprio como um desconhecido que só é capaz de conhecer verdadeiramente na medida em que se dá e se abre a Alguém.

Ao orquestrar a obra Maternidade do ponto de vista do Filho, Almada Negreiros desvenda uma grandeza de Sara que passaria despercebida ao espectador e, quem sabe, talvez até a ela própria, sem deixar por isso de ser verdade, pelo simples facto de ser a Mãe de José. Por isso, talvez eu não seja apenas “do tamanho do que vejo” como sugere Alberto Caeiro, sou também do tamanho d’Aquele que me vê.

João Câmara Serra

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